quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Atualização do CDC adota a teoria da carga dinâmica da prova

No momento em que se discute a “modernização” do Código de Defesa do Consumidor (CDC), várias foram as manifestações da sociedade sobre a necessidade de os juristas incumbidos dessa tarefa e, após, os parlamentares que se apropriassem do texto, não retrocederem nas conquistas já sedimentadas dos consumidores, atendendo ao que se propõe uma lei cujo enunciado diz a que veio: proteger o consumidor.
 
É justamente em um dos direitos básicos desse consumidor que se insere uma das relevantes ferramentas que mais atendem ao propósito do CDC: a inversão do ônus da prova (artigo 6º, VIII). Ainda que o comando seja claro, permanecem as discussões a respeito da aplicação do dispositivo, seja quanto às condicionantes a ele inerentes (caracterização da hipossuficiência ou vulnerabilidade), seja quanto ao momento processual de sua aplicação, o que será melhor explorado a seguir.
 
Ônus da prova

 Não é possível negar a importância da prova para o processo, como já pontificava Bentham ao afirmar que “el arte del processo no es essencialmente outra cosa que el arte de administrar las pruebas[1].
 
Diante disso, para efetivamente proteger determinado grupo social (sujeito de direitos), fez-se necessário lançar mão de inúmeros dispositivos que invertem a lógica acima, como o fez o CDC ao preconizar a inversão do ônus da prova como direito básico do consumidor, além de distribuí-la de forma diferente da habitual para garantir a proteção dele.
 
Ocorre que, mesmo na visão tradicional do processo, a atual disciplina do ônus probatório é colocado em xeque:
 
“(...) nem sempre autor e réu têm condições de atender a esse ônus probatório que lhes foi rigidamente atribuído — em muitos casos, por exemplo, veem-se diante de prova diabólica. E não havendo elementos suficientes nos autos para evidenciar os fatos, o juiz terminará por proferir decisão desfavorável àquele que não se desincumbiu do seu encargo de provar (regra de julgamento). É por isso que se diz que essa distribuição rígida do ônus da prova atrofia nosso sistema e sua aplicação inflexível pode levar a resultados injustos”.[2]
 
Se isso fica evidente nas hipóteses em que há nítido desequilíbrio entre as partes (relação entre consumidor e fornecedor, empregado e empregador), mesmo nos conflitos entre iguais a adoção rígida da distribuição do ônus probatório pode ser muito prejudicial para o alcance do resultado adequado da demanda submetida ao Judiciário, afastando-o de sua finalidade precípua de promover e manter a paz social.
 
Nesse sentido a doutrina estrangeira passa a trabalhar com a “teoria da carga dinâmica da prova”, inicialmente tão bem defendida por Bentham, para quem a carga da prova deve ser imposta, em cada caso concreto, à parte que possa realizá-la com menos demora, transtornos e gastos[3].
 
Entretanto, há muitas críticas sobre a adoção, no país, da teoria da carga dinâmica da prova, por força expressa do artigo 333 do Código de Processo Civil vigente, que, salvo melhor juízo, ilustra a adoção da mais pobre hermenêutica jurídica que pode ser conferida a uma lei: a interpretação literal.
 
Para justificar essa linha de raciocínio, oportunas as palavras de Paulo Rogério Zaneti:
 
“Nesse caminhar, temos que o principal fundamento da doutrina da carga dinâmica da prova é a justiça. Mas não é o único. Também se pode citar como fundamento da teoria da carga dinâmica da prova o dever que têm as partes de se conduzirem no processo com lealdade, probidade e boa-fé, o dever de colaborarem entre si para descobrirem a verdade dos fatos, assim como o dever de cooperação com o órgão jurisdicional para averiguar como ocorreram os fatos, a fim de que aquele possa proferir uma sentença justa”.[4]
 
Para por uma pedra em cima da celeuma instaurada, que tanto prejudica o bom andamento dos feitos ajuizados, o projeto de lei que tem por objetivo a atualização do Código de Processo Civil, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 8.046/10), adota a teoria da carga dinâmica da prova, assim prescrevendo, em sua redação original[5]:
Art. 358. Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, o juiz poderá, em decisão fundamentada, observado o contraditório, distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em melhores condições de produzi-la.
§ 1º Sempre que o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso do disposto no art. 357 deverá dar à parte oportunidade para o desempenho adequado do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A inversão do ônus da prova, determinada expressamente por decisão judicial, não implica alteração das regras referentes aos encargos da respectiva produção.
A disciplina do ônus da prova no CDC

 O Código de Defesa do Consumidor, para concretizar a proteção e defesa do consumidor pretendidas, disciplinou o tema de duas formas: ora prevendo a inversão do ônus da prova a critério do juiz, enquanto direito básico do consumidor (art. 6º, VIII); ora atribuindo-o desde o início ao fornecedor (art. 12, § 3º, art. 14, § 3º e art. 38).
As maiores discussões em torno do tema no CDC repousam na condicionante da hipossuficiência para a aplicação da inversão do ônus da prova a critério do juiz e sobre o momento processual em que esta deve ser aplicada.
 
Acerca do primeiro tópico, uma das maiores autoridades em matéria de processo civil no país e autor do anteprojeto do CDC, professor Kazuo Watanabe, chegou a sustentar que o conceito de hipossuficiência seria o constante do artigo 2º, parágrafo único, da Lei 1.060/50, ou seja, de caráter meramente econômico. Mais tarde, entretanto, o professor Kazuo reviu essa posição[6],aproximando-se do que sustenta atualmente a doutrina consumerista, o que fica evidente neste excerto de Rizzatto Nunes:
 
“Mas hipossuficiência, para fins da possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, de sua distribuição, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício, etc.”.[7]
A outra discussão acerca do tema no CDC ganha contornos menos nítidos, haja vista o quilate dos defensores de cada uma das visões dissonantes. Para que não se torne o ponto central deste artigo, a divergência ficará restrita a doutrinadores de excelência:
 
“Quanto ao momento da aplicação da regra de inversão do ônus da prova, mantemos o mesmo entendimento sustentado nas edições anteriores: é o do julgamento da causa”. (...) Efetivamente, somente após a instrução do feito, no momento da valoração das provas, estará o juiz habilitado a afirmar se existe ou não situação de non liquet, sendo caso ou não, consequentemente, de inversão do ônus da prova. Dizê-lo em momento anterior será o mesmo que proceder ao prejulgamento da causa, o que é de todo inadmissível”.[8]
 
“Controverte-se a respeito de se saber qual o momento processual em que deve se operar a inversão do ônus da prova (...), que o momento adequado para a inversão do ônus da prova seria o da fase instrutória, ‘mais adequado que na sentença, na medida em que não impõe qualquer surpresa às partes litigantes’. Essa orientação parece ser a mais correta, seja porque a inversão do ônus da prova, como se viu, não é automática, seja porque mais consentânea com os princípios do devido processo legal”.[9]
 
Ocorre que o entendimento judicial foi consolidado pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça quando da conclusão do julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 422.778-SP[10], confirmando o entendimento de que a inversão do ônus da prova, como regra de julgamento, deve ocorrer antes da prolação da sentença, preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se a possibilidade de produção de novas provas por aquele a quem foi atribuído tal ônus, após a instrução do feito.
 
Apesar da esperada pacificação do aludido entendimento, a disciplina do ônus da prova no CDC ganhará novos ingredientes se aprovada a redação do diploma submetido à discussão pelo senador Ricardo Ferraço, relator da Comissão Temporária de Modernização do Código de Defesa do Consumidor no Senado[11], consagrando-se a teoria da carga dinâmica e o momento no qual deve ocorrer a inversão, em consonância com o entendimento do STJ supracitado:
PROJETO DE LEI DO SENADO No 282, DE 2012
Altera a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar a disciplina das ações coletivas e fortalecer os PROCONs e órgãos públicos do sistema nacional de defesa do consumidor.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1o A Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), passa a vigorar com as seguintes alterações:
(...)
CAPÍTULO I–A
DO PROCEDIMENTO DA AÇÃO COLETIVA
Seção I Disposições Gerais
Art. 90-A. A ação coletiva, na fase de conhecimento, seguirá o rito ordinário estabelecido no Código de Processo Civil, obedecidas as modificações previstas neste Código.
§ 1o O juiz poderá:
I – dilatar os prazos processuais, em decisão fundamentada e ouvida as partes;
II – alterar a ordem da produção dos meios de prova, até o momento da prolação da sentença, adequando-os às especificidades do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico coletivo, sem prejuízo do contraditório e do direito de defesa.
(...)
Seção III
Da Tramitação do Processo
Subseção I
Da Resposta do Réu e da Audiência Ordinatória
(...)
Art. 90-D. Não obtida a conciliação e apresentada a defesa pelo réu, o juiz designará audiência ordinatória, tomando fundamentadamente as seguintes decisões, assegurado o contraditório:
(...)
VI – esclarecerá as partes sobre a distribuição do ônus da prova e sobre a possibilidade de sua inversão, em favor do sujeito vulnerável, podendo, desde logo, invertê-lo, sem prejuízo do disposto no art. 6o, VIII, atribuindo-o à parte que, em razão de deter conhecimentos técnicos ou científicos ou informações específicas sobre os fatos da causa, tiver maior facilidade em sua demonstração;”
A evolução da sociedade, pautada pelo consumo de massa, transformou radicalmente as relações sociais no decorrer do século XX, exigindo grandes reflexões dessa mesma sociedade e do Estado para dar respostas efetivas aos problemas cada vez mais complexos que iam surgindo.
Foi com esse espírito que o constituinte originário brasileiro de 1988 editou a Carta Maior, trazendo a defesa do consumidor ora como direito fundamental do cidadão, ora como princípio balizador da atividade econômica.
 
Nessa linha, um dos institutos mais festejados nesse sentido é o direito básico do consumidor à facilitação da defesa dos seus direitos, com a possibilidade da inversão do ônus da prova no processo civil.
 
Ainda que tenha suscitado discussões doutrinarias e judiciais por anos a fio, cada vez mais a disciplina do ônus da prova no processo civil passa a se assemelhar às inteligentes disposições do CDC, que, ainda que para restabelecer um necessário equilíbrio, consagra a ideia de que aquele que tem mais condições de produzir a prova é que deve fazê-lo.
 
E é por essa linha, mediante a adoção da “teoria da carga dinâmica da prova” que as atualizações do Código de Processo Civil e do Código de Defesa do Consumidor seguirão, para o bem da sociedade brasileira!
 
Fonte - Conjur

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